sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

A FESTA AOS OLHOS DE UM PETIZ



A Festa aos olhos de um petiz

À data de 29 de Dezembro não havia a preocupação de preparar o réveillon num hotel de 5 estrelas, apenas era aguardada a noite dos Reis

29 DEZ 2017 / 02:00 H.
Por entre as frestas de uma porta envelhecida pelo tempo, a luz da lua espreitava um quadro de outro natal, de uma família humilde mas feliz na sua simplicidade e na pacatez e sossego de uma modesta casa no campo, num sítio de onde não se via o reboliço e o consumismo da cidade. Num recanto do amplo compartimento que servia de sala de estar e jantar, uma abobada composta por ramos de pinheiro bravo dos quais pendiam balões, constituía o abrigo do Menino Jesus que, lá do alto da “escadinha”e sob uma auréola de alegra-campo e enfeitada com pequenas tangerinas, laranjas, pêros,“cabrinhas” da rocha e pequenos vasos de searas em crescimento, preenchiam os degraus da lapinha forrada com papel vermelho a condizer com a época. A mão erguida do Menino com o dedo médio e o indicador em forma de V parecia abençoar aquele peculiar quadro familiar de paz, sossego e amor. A luz ténue de um candeeiro a petróleo sobre uma pequena mesa no meio da sala irradiava algum calor, porém, insuficiente para aquecer todos os membros da família que se aconchegavam uns aos outros transmitindo calor humano e coragem quando lá fora o rugido das rajadas do vento gélido se faziam sentir naquela noite de Dezembro e teimava em entrar pelas frestas da porta e de uma mini janela que dava para o terreiro.
As mulheres, avó, filhas e nora impedidas de sair à rua, bordavam no meio da sala fazendo um esforço para enfiar a linha na agulha dada a parca luz que o candeeiro irradiava em parte devido ao fumo do petróleo que ofuscava o vidro. O pai, um dos nove irmãos que havia concluído o exame de 4ª classe, sentado em cima de uma velha arca, também esforçava a vista para ler um dos 52 volumes do romance “a Mãezinha dos pobres”, publicado quinzenalmente, o qual até avô e tios embevecidos ouviam em silêncio e acompanhavam, quase diariamente, como se fosse um folhetim através de um rádio que não existia. Quando alguém emitia apenas um sussurro, mesmo que ao ouvido, logo era admoestado pelo avô, sentado na sua cadeira de vime no canto da sala onde fumava um cigarro “santa maria”, e não queria perder pitada do episódio que estava a ser relatado.
Num dos barrotes de madeira arqueados pelo tempo e pelo peso do soalho de um compartimento superior, que por sua vez suportava a cobertura de restolho da habitação onde os irmãos dormiam, encontravam-se pendurados os instrumentos musicais que iriam alegrar a Festa. A viola de arame, a guitarra de fado, a rabeca, a gaita-de-beiços, o acordeão, o pandeiro, o bombo, o rajão o pandeiro e o braguinha iriam sair do sítio para as mãos de um grupo constituído pelos tios e amigos que percorriam as casas dos vizinhos os quais eram recebidos efusivamente, qual banda de rock, porque eram eles que tocando e cantando, lembravam o encanto e o espírito do natal. Na 1ª oitava vamos ao sítio do Janeiro a casa da tia Carolina! aventava um, para logo o outro entusiasmado exclamar; e na 2ª oitava vamos ao sítio da Terça a casa da prima Bernardete! Os instrumentos alegravam as missas do parto, iriam alegrar a véspera, o dia de natal, as oitavas, a Festa dos reis e só seriam guardados após a festa do Santo Amaro.
Na antevéspera a avó amassava o pão e deixava levedar para na véspera leva-lo ao forno de lenha de uma tosca cozinha e consumir no dia de Festa o qual, mesmo endurecidos, sobrava ainda para os dias seguintes porque não havia um “shop” por perto onde fosse comprar pão fresco. Na noite da consoada servia-se uma saborosa canja de galinha velha e no dia de Natal pela manhã uma fatia de pão com torresmos e cacau (então iguaria de luxo) comprado à grama na venda do Moinheiro ou do Vasconcelos. A carne de vinha-d’alho, proveniente da função do porco - apenas na casa dos mais abastados- acompanhada com batata doce, semilha e feijão cultivados na própria fazenda era o repasto para o almoço do dia de Festa.
Um petiz de cinco anos aconchegado ao colo da tia, enquanto a mãe bordava, memorizava sem saber, esta aguarela que recordaria ao longo da vida e resistia estoicamente ao sono que o invadia já que não queria perder o momento único de colocar o sapatinho na lareira da cozinha, contigua à casa, cujo acesso só era possível pela rua e ninguém tinha coragem para deitar o nariz fora da porta e enfrentar o frio agreste. Por muito que custasse o pai determinado embrulhou o filho numa manta e levou-o à lareira onde a criança, finalmente, colocou o sapatinho não fosse o Pai Natal descer pela chaminé e não encontrasse algo onde depositar o brinquedo porque as crianças de outros natais ainda acreditavam piamente na vinda do velhinho barbudo. A noite mal dormida era interminável dada a ânsia de logo pela manhã ir à lareira espreitar o presente com o homem das barbas brancas e fato vermelho o havia contemplado. Não eram presentes de luxo – os tabletes, os telemóveis e os drones viriam mais tarde- era apenas um carrinho de plástico, réplica do wokswagen carocha, e um ioiô mas era suficiente para trazer enorme felicidade, magia e encanto aquela criança que viveu outra época na qual os pais modernos não lhe roubavam a fantasia.
À data de 29 de Dezembro não havia a preocupação de preparar o réveillon num hotel de 5 estrelas, apenas era aguardada a noite dos Reis para calcorrear novamente veredas e leito das ribeiras empunhando um “cezico” (recipiente com petróleo e torcida) que iluminava a negra noite e, cantando as janeiras, lá iam de casa em casa a troco de mais um copo e um “dentinho” que ficara do “faustoso” dia de Festa. Saudades de natais que não voltam mais porque a sociedade de hoje rege-se por outros padrões de felicidade esquecendo de preservar as nossas saudáveis culturas tradicionais e transmiti-las aos nossos petizes.
Um próspero ano novo e, parafraseando um amigo meu; façam o favor de ser felizes

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