Jornal
de Negócios 2013.01.06
Daniel Deusdado
ANA, grávida da nova Lisboa
Ah, sim, o discurso de Cavaco.
Talvez, talvez, depende, "eu avisei". Sempre tarde. Adiante. Falemos
de coisas concretas e consumadas: o casamento da ANA, uma historieta que tem
tudo para sair muito cara. Passo a explicar: a ANA geria os aeroportos com
lucros fabulosos para o seu pai, Estado, que, entretanto falido, leiloou a
filha ao melhor pretendente. Um francês de apelido Vinci, especialista em
autoestradas e mais recentemente em aeroportos, pediu a nossa ANA em casamento.
E o Estado entregou-a pela melhor maquia (três mil milhões de euros), tornando
lícita a exploração deste monopólio a partir de uma base fabulosa: 47% de
margem de exploração (EBITDA). O Governo rejubilou com o encaixe... Mas vejamos
a coisa mais em pormenor. O grupo francês Vinci tem 37% da Lusoponte, uma PPP
(parceria público-privada) constituída com a Mota-Engil e assente numa
especialidade nacional: o monopólio (mais um) das travessias sobre o Tejo. Ora
é por aqui que percebo por que consegue a Vinci pagar muito mais do que os
concorrentes à ANA. As estimativas indicam que a mudança do aeroporto da
Portela para Alcochete venha a gerar um tráfego de 50 mil veículos e camiões
diários entre Lisboa e a nova cidade aeroportuária. É fazer as contas, como
diria o outro... Mas isto só será lucro quando houver um novo aeroporto.
Sabemos que a construção de Alcochete depende da saturação da Portela. Para o
fazer, a Vinci tem a faca e o queijo na mão. Para começar pode, por exemplo,
abrir as portas à Ryanair. No dia em que isso acontecer, a low-cost irlandesa
deixa de fazer do Porto a principal porta de entrada, gerando um desequilíbrio
turístico ainda mais acentuado a favor da capital. A Ryanair não vai manter 37 destinos
em direção ao Porto se puder aterrar também em Lisboa. Portanto, num primeiro
momento os franceses podem apostar em baixar as taxas para as low-cost e os
incautos aplaudirão. Todavia, a prazo, gerarão a necessidade de um novo
aeroporto através do aumento de passageiros. Quando isso acontecer, a Vinci
(certamente com os seus amigos da Mota-Engil) monta um apetecível sindicato de
construção (a sua especialidade) e financiamento (com bancos parceiros). A obra
do século em Portugal. Bingo! O Estado português será certamente chamado a dar
avais e a negociar com a União Europeia fundos estruturais para a nova cidade
aeroportuária de Alcochete. Bingo! A Portela ficará livre para os interesses
imobiliários ligados ao Bloco Central que sempre existiram para o local. Bingo!
Mas isto não fica por aqui porque não se pode mudar um aeroporto para 50
quilómetros de distância da capital sem se levar o comboio até lá. Portanto, é
preciso fazer-se uma ponte ferroviária para ligar Alcochete ao centro de
Lisboa. E já agora, com tanto trânsito, outra para carros (ou em alternativa
uma ponte apenas, rodoferroviária). Surge portanto e finalmente a prevista
ponte Chelas-Barreiro (por onde, já agora, pode passar também o futuro TGV
Lisboa-Madrid). Bingo! E, já agora: quem detém o monopólio e know-how das
travessias do Tejo? Exatamente, a Lusoponte (Mota-Engil e Vinci). Que
concorrerá à nova obra. Mas, mesmo que não ganhe, diz o contrato com o Estado,
terá de ser indemnizada pela perda de receitas na Vasco da Gama e 25 de Abril
por força da existência de uma nova ponte. Bingo! Um destes dias acordaremos,
portanto, perante o facto consumado: o imperativo da
construção do novo grande
aeroporto de Lisboa, em Alcochete, a indispensável terceira travessia sobre o
Tejo, e a concentração de fundos europeus e financiamento neste colossal
investimento na capital. O resto do país nada tem a ver com isto porque a
decisão não é política, é privada, é o mercado... E far-se-á. Sem marcha-atrás
porque o contrato agora assinado já o previa e todos gostamos muito de receber
três mil milhões pela ANA, certo? O casamento resultará nisto: se correr bem,
os franceses e grupos envolvidos ganham. Correndo mal, pagamos nós. Se ainda
estivermos em Portugal, claro.
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